sexta-feira, 30 de setembro de 2011

Fragmento de memória


"Fala-se hoje muito em liberdade individual, mas no entanto aquilo que domina, não é o ser humano, o indivíduo em geral; é o indivíduo privilegiado pela sua posição social, é a posição; é a classe."

Bakunin

quinta-feira, 22 de setembro de 2011

O ateu crente

Pobre diabo, acometido na cama há dois anos devido a um derrame, Seo Júlio recebera a visita de um compadre da época de infância. Quando jovem, o visitante era declaradamente ateu, não possuía religião, apesar de ter recebido formação católica, juntamente com seus irmãos. Na idade adulta, Marx, o compadre em questão, sempre fora libertino e abusado em suas extravagâncias, vivia em tabernas e bares da pequena cidadela de Moscou Vila da Pedra. Marx andava com meretrizes e dizia que Deus fora uma piada, contada durante séculos para adestrar a humanidade. Para ele, a religião era o ópio do povo.
Passados alguns anos, Marx envelhecera a passos largos. Não casara ou tivera filhos, permanecera solitário até o fim da vida, mas compartilhava de uma amizade forte com Seo Júlio, vizinho e compadre de roça na infância. Após os dezoito anos, Marx fora enviado por seus pais para estudar direito na metrópole. Concluído o curso, viera novamente advogar na região de sua terra natal. Quando o assunto era religião, Marx lançava-se, com unhas e dentes, numa discussão tremenda, sendo contra a temática. Seo Júlio, homem simples e humilde, não tivera os estudos do amigo, porém evitava discorrer sobre religião.
Em meados de 1950, dois anos após o derrame, Marx estava no leito junto ao compadre Júlio. “Que lástima, como o compadre está envelhecido!” pensou o ateu. No quarto, Seo Júlio já não falava devido à doença, Marx contava sobre os fatos de sua vida. Após alguns minutos, Marx percebeu que seu compadre havia falecido. Num ato espontâneo, brotado de uma amizade profunda, Marx ajoelhou - se ao lado do defunto e rezou uma ave-maria e um pai-nosso pela alma do amigo. Até mesmo os ateus convictos se sensibilizam em determinados momentos da vida.

sexta-feira, 16 de setembro de 2011

A chave

Andava de um lado para outro, apressado. Olhava por todos os cantos, em cima da mesa não estava também, na cômoda menos ainda. Onde fora parar? Tão pequena e valiosa, sempre permanecera junto a um pingente de sua amada avó. Fazia frio. Meio encolhido no céu, o sol tardava a brilhar forte e impetuoso, em contrapartida os ventos arrastavam qualquer lembrança do passado.
Inquieto com o sumiço, o medo assolou sua alma. “Será que souberam de sua existência e roubaram – na de mim?” Pensou Seo Pedro, um velho maquinista, aposentado. Sempre perambulava pelas praças do Planalto, recato município no interior de Goiânia. Seo Pedro viu o país crescer ao seu redor. Surpreendido com a visita de Getúlio, um político de renome nas redondezas do Planalto, Seo Pedro fora presenteado. Getúlio entregou um pequeno agrado para o simples maquinista. Desde a juventude, Seo Pedro guarda a santa relíquia. Devoção ou cuidado sempre fora prestado ao presente.
Com um suspiro de emoção, o maquinista percebeu o brilho fosco dela, em cima da pia. Apanhou a chave, agrado do presidente Getúlio para o Seo Pedro com os seguintes dizeres: “Tu és Pedro, dou –lhe a chave do progresso”. Progresso ou não, o maquinista sempre trouxe a chave como amuleto em sua vida.

sábado, 10 de setembro de 2011

Bonecos falantes

Lá vinha ele, Elias Rocha ou Elias “dos bonecos”, cavalgando como um cavaleiro sobre sua carroça, curvado pelo tempo e pela idade. Sempre perambulava a orla do rio Piracicaba, à procura de restos de madeira, garrafas plásticas e materiais para suas criações. Jeito humilde e de família simples, Elias vivia em meio à modernidade local da Rua do Porto.
Em meados de junho, na antiga Freguesia de Santo Antonio de Piracicaba, à margem esquerda do rio, a Festa do Divino animava os moradores locais com congada, cururu e barraquinhas.  Elias fora convocado pela Irmandade do Divino para uma missão especial; o capelão da festa, Monsenhor Jorge, pediu para o bonequeiro uma encomenda especial:
- Elias, a Santa Madre Igreja, considerando suas criações e belezas com que encanta o rio Piracicaba, pede que vossa senhoria embeleze a festa do divino com alguns de seus bonecos. – disse Monsenhor.
Impossibilitado por uma doença nas cordas vocais, Elias concordou com um manejo de cabeça. Lá foi Elias, ajudando o rio e reaproveitando o lixo existente no local.
Os preparativos para o Divino Espírito ganhavam corpo, os moradores da Rua do Porto contribuíam com doações, o barracão já enfeitado para o Tríduo, o palco do cururu posto em frente à capela e o barco ancorado na rampa. Com isso, Elias trabalhava em cinco bonecos, guardiões do Divino, com tanta destreza e paixão, próprios do artista.
No último dia do Tríduo, celebrado na pequena capela, o bonequeiro terminou suas criações. A entrega da encomenda ao capelão seria na manhã seguinte, no sábado. Exausto pelo trabalho, Elias fora dormir.
Na manhã seguinte, quando acordou, o bonequeiro se deparou com um falatório em seu quintal. Mas quem poderia ser? Só os bonecos do Divino estavam presentes. Isso era impossível. Assustado, Elias olhou pelo buraco da porta da cozinha, com grande espanto percebeu que os bonecos estavam sentados, conversando. “Estou ficando louco”, pensou Elias.
Intrigado, Elias saiu à procura de ajuda, pois precisava entregar a encomenda falante! Seu Bartolomeu, o vizinho de Elias, estava sentado à porta fumando cachimbo de corda.
- Bom dia, Elias. Porque tá assustado homem?
Elias, com gestos, tentou explicar para Seu Bartolomeu. Após um tremendo esforço, desistiu. Bartolomeu, vendo a agonia de Elias, decidiu acompanhar o bonequeiro até a casa. Elias, ao entrar, sentiu um silêncio profundo, espiou pelo buraco da porta da cozinha. Os bonecos do Divino permaneciam em pé, onde no dia anterior havia deixado. Será que foi um sonho ou obra do Espírito Santo?
Naquele ano, a festa comoveu a todos os participantes, mas Elias permaneceu reflexivo, pois não é todo dia que seus bonecos falam. Assim, Elias continuou a embelezar as margens do Piracicaba com seus guardiões pescadores.