quinta-feira, 1 de dezembro de 2011

Conflito metálico


A confusão estava pronta. Barulheira descomunal na cozinha. Há anos a discussão se estendia naquela casa. Os vizinhos já não entendiam tamanha desavença sobre os cômodos do casebre. Clock, o líder da oposição, com seu tamanho monstruoso e metálico inoxidável, iniciou a contenda:
 - Há tempos nós, irmãos metálicos, estamos sendo alvo de chacota e descaso pela comunidade gastronômica, pois certo cidadão dos talheres zombou descaradamente de nossa competência, desqualificou nosso trabalho e esforço perante os humanos. Declaro aberta guerra para com a comunidade dos talheres.
Cerca de cem metros do motim “panelado”, um grupo razoável de talheres, reunidos em torno de Tramontina, líder fino e afiado em suas ações e palavras, começou seu discurso primordial:
- Irmãos talheres, desde a idade dos metais, nossos ancestrais têm recebido ofensas graves daqueles ogros “paneleiros”. Nós temos o dever de lutar por nossos direitos perante a comunidade metálica. Com isso, declaro aberta a revolução talhada em benefício e retratação pública do descaso passado.
Ambos os lados preparam seus exércitos para o declarado dia M, de Metalicação. Clock, reforçado em sua armadura inoxidável, encorajava os mais jovens com palavras positivas. Tramontina afiava os corações dos talheres com idéias fortes. Consenso entre talheres e panelas estava longe de ser alcançado. As ofensas de ambas as partes se referiam ao uso dos humanos; qual dos dois, talheres ou panelas, era essencial e indisponível no preparo da comida?
O dia da Metalicação se aproximava rapidamente. Quando no raiar do terceiro dia, talheres e panelas se concentravam no campo de batalha, um sujeito meio bruxo se pôs no meio da cozinha, freando a marcha dos exércitos. Com voz de profeta disse a multidão:
- Talheres e panelas, não iniciem essa guerra. A retaliação não é necessária. Houve sim, um mal entendido no passado, mas seus ancestrais já pagaram pela desavença. Saibam que ambos se complementam no preparo da comida, os talheres servindo no corte dos alimentos, já as panelas para coser os alimentos, tornando mais agradável e comestível. Ambos servem para o sustento dos seres humanos. Peço que deixem o ideal de guerra e construam a paz entre vocês, pois hoje, raiou o sol da esperança de um novo tempo.
Panelas e talheres comovidos pela Tábua, o estranho sujeito de carvalho, bruxo de madeira, deixaram o campo e retornaram para seus afazeres cotidianos. Clock e Tramontina, em parceria coordenavam os preparos na cozinha de modo pacífico. Assim, os vizinhos perceberam a calmaria naquele casebre. A paz e o silêncio reinaram sobre ele.

quarta-feira, 16 de novembro de 2011

O velho calção

“O velho calção de banho, um dia para vadiar, um mar que não tem tamanho...” Ao ouvir esse trecho, Vinicius, conhecido desde a infância por Vininha (sua mãe era fã incondicional de Tom Jobim e Vinicius de Morais), lembrou-se do velho calção. Uma peça rara, única quando fora comprada, um calção de banho amarelo e branco. O calção não era muito curto, nem muito comprido, parecia largo em suas medidas.
Ao vestir a primeira vez, Vininha sentir um calafrio, parecia algo de outro tempo, o calção lhe conferia um status superior, outra visão de mundo. Saiu para a praia, como de costume, às sete da manhã para seu exercício matinal, apesar de ser domingo. A praia deserta, a princípio, começou a ser povoada pelos turistas e pessoas da região.
Cansado pelo quilômetro percorrido, o rapaz resolveu tomar uma água de coco no quiosque. “Estranho” pensou Vininha. Parecia que todos os olhares estavam sobre ele. “O que aconteceu? Será que meu calção está furado?” Assombrado por diversos questionamentos, ele desconhecia o motivo de ter atraído todas as atenções.
Uma senhora, próxima da mesa do garoto, pensou, “olha que safadeza, que indecência esse calção de banho”. Duas moças trocavam olhares e davam risinhos para Vininha e alguns jovens, da mesa ao lado, comentaram:
- O rapaz está abalando os corações das garotas, que cafona o seu calção...
Após vintes anos, o calção de banho, fora da moda, ainda despertava suspiros e comentários na redondeza. Vininha, já casado, ao acordar naquela segunda sentiu um arrepio pelo corpo. Matilde, sua esposa, sempre fora solícita e apreensiva, companheira e fiel nas decisões do esposo.
Um descuido, a campainha toca. Matilde assusta-se com o barulho e queima levemente o calção de banho, quando passava roupa. Como contar a tragédia ao marido?
O esposo ao voltar do serviço teve uma surpresa, sua esposa fez macarronada a bolonhesa, seu prato preferido. Quando na frente da televisão, Matilde, com coragem, inicia a conversa derradeira:
- Vininha, meu anjo, tenho uma notícia para te contar.
- Pode dizer.
- Hoje aconteceu um desastre, mas ninguém saiu ferido.
O marido olha preocupado para a esposa:
- Você sofreu algum acidente?
- Não! Mas o seu calção de banho...
Antes que terminasse a frase, Vininha, com uma angústia no peito, desata a chorar. Matilde tentou acalmá-lo:
- Calma, meu amor. Haverá outros, foi só uma “queimadinha” de leve...
- Queimadinha de leve? Não foi o seu calção... Vou para o quarto, preciso pensar.
Desiludido com o fato, Vininha desatou a soluçar sobre o resto do calção. Fora tempos bons, em sua juventude, ao usar aquele calção, verdadeiro presente dos deuses. Desde suas aventuras até aquele momento, seu calção de banho esteve presente, como um companheiro fiel ao seu lado. Matilde pôs fim num caso de amor entre o homem e seu calção de banho. A partir daquele dia, inconformado com a perda, ele pensou em divórcio, mas resolveu perdoar a traição da sua esposa.

quinta-feira, 13 de outubro de 2011

Dia da padroeira

Posto uma homenagem lida pela locutor da rádio, Lair Braga, na presença de padre Otto Dana, durante o tríduo, terça- feira (11/10/11) na Capela N. Sra Aparecida, na rua Prudente de Morais, centro, Piracicaba.


Santa Mãe Maria, nessa travessia,
Cubra-nos teu manto cor de anil.
Guarda nossa vida, Mãe Aparecida!
Santa padroeira do Brasil.
Ave, Maria! Ave, Maria. (bis)

No final da tarde, ouviam-se vozes delicadas e femininas a entoar tal hino sobre um pequeno casebre, próximo da fábrica Boyes. Dona Jaci Ferraz, fundadora do pequeno centro operário N. Sra Aparecida, juntamente com outras senhoras do bairro, encorajavam as moças mais jovem na religião e ensinavam alguns ofícios domésticos. Por volta de 25 de maio de 1941, o então prefeito da época, Dr. José Vizioli, doou um pequeno terreno para o Centro Operário sobre as responsabilidades do Mons. Manuel Francisco Rosa, cura da Catedral de Santo Antônio.
Mulheres da região com seus maridos operários e suas crianças assistiam, sob o sol da manhã, o lançamento da primeira pedra na Capela Nossa Senhora Aparecida, sinal de um novo tempo naquela comunidade. Com o trabalho árduo dos operários locais, aos domingos e feriados, e os esforços das mulheres para angariar donativos para construção, aos 14 dias do mês de dezembro de 1941, a “igrejinha” estava quase pronta.
 No bairro havia festa, onde um grupo de pessoas se reuniu sobre a fachada da Capela, acolhidas sobre o Manto de Nossa Senhora, para celebrar a 1ª missa com direito até de primeira comunhão de algumas crianças. Com doações, festas e a reza do povo humilde e simples da região, a casa de Nossa Senhora estava sendo equipada em sua estrutura, para acolher aos domingos seus fiéis e devotos. Do entusiasmo das procissões, dos terços rezados, das orientações dos padres, a comunidade local caminhava sobre o olhar e proteção atenta da Virgem Mãe Aparecida.
A partir de 1969, em plena ditadura militar, no pós – concílio, um jovem padre assume os trabalhos da igreja local. Com determinação e criatividade, padre Otto Dana, auxiliado por equipes da comunidade, amplia e reforma a capela. Em conjunto com o novo pároco, as coordenadoras nas novenas de natal animam os trabalhos nos quarteirões em torno da capela. Em 1978, um clube de senhoras, intituladas “Colméia do Amor”, reassume o ideal filantrópico de auxílio aos mais necessitados. Com prendas e rendas engajam-se na construção do salão comunitário.
Após alguns anos, a capela sempre mais fora freqüentada em suas missas festivas, com empenho litúrgico e motivação do padre Otto. Maria, mãe dos discípulos, abençoava continuamente as pastorais, os ministros da eucaristia no cuidado aos doentes e os fiéis durante as celebrações. Outros padres e seminaristas passaram pela “capelinha”, na cidade onde “peixe pára”, Piracicaba, entretanto alguns serão sempre lembrados nos corações dos fiéis. Que nesses 70 anos de criação da Capela, oh Maria Santíssima, Mãe celestial, fortaleça sempre mais a nossa comunidade, para que possamos louvar-vos, amar-vos e dar-vos graças por toda a eternidade. Amém.

sexta-feira, 30 de setembro de 2011

Fragmento de memória


"Fala-se hoje muito em liberdade individual, mas no entanto aquilo que domina, não é o ser humano, o indivíduo em geral; é o indivíduo privilegiado pela sua posição social, é a posição; é a classe."

Bakunin

quinta-feira, 22 de setembro de 2011

O ateu crente

Pobre diabo, acometido na cama há dois anos devido a um derrame, Seo Júlio recebera a visita de um compadre da época de infância. Quando jovem, o visitante era declaradamente ateu, não possuía religião, apesar de ter recebido formação católica, juntamente com seus irmãos. Na idade adulta, Marx, o compadre em questão, sempre fora libertino e abusado em suas extravagâncias, vivia em tabernas e bares da pequena cidadela de Moscou Vila da Pedra. Marx andava com meretrizes e dizia que Deus fora uma piada, contada durante séculos para adestrar a humanidade. Para ele, a religião era o ópio do povo.
Passados alguns anos, Marx envelhecera a passos largos. Não casara ou tivera filhos, permanecera solitário até o fim da vida, mas compartilhava de uma amizade forte com Seo Júlio, vizinho e compadre de roça na infância. Após os dezoito anos, Marx fora enviado por seus pais para estudar direito na metrópole. Concluído o curso, viera novamente advogar na região de sua terra natal. Quando o assunto era religião, Marx lançava-se, com unhas e dentes, numa discussão tremenda, sendo contra a temática. Seo Júlio, homem simples e humilde, não tivera os estudos do amigo, porém evitava discorrer sobre religião.
Em meados de 1950, dois anos após o derrame, Marx estava no leito junto ao compadre Júlio. “Que lástima, como o compadre está envelhecido!” pensou o ateu. No quarto, Seo Júlio já não falava devido à doença, Marx contava sobre os fatos de sua vida. Após alguns minutos, Marx percebeu que seu compadre havia falecido. Num ato espontâneo, brotado de uma amizade profunda, Marx ajoelhou - se ao lado do defunto e rezou uma ave-maria e um pai-nosso pela alma do amigo. Até mesmo os ateus convictos se sensibilizam em determinados momentos da vida.

sexta-feira, 16 de setembro de 2011

A chave

Andava de um lado para outro, apressado. Olhava por todos os cantos, em cima da mesa não estava também, na cômoda menos ainda. Onde fora parar? Tão pequena e valiosa, sempre permanecera junto a um pingente de sua amada avó. Fazia frio. Meio encolhido no céu, o sol tardava a brilhar forte e impetuoso, em contrapartida os ventos arrastavam qualquer lembrança do passado.
Inquieto com o sumiço, o medo assolou sua alma. “Será que souberam de sua existência e roubaram – na de mim?” Pensou Seo Pedro, um velho maquinista, aposentado. Sempre perambulava pelas praças do Planalto, recato município no interior de Goiânia. Seo Pedro viu o país crescer ao seu redor. Surpreendido com a visita de Getúlio, um político de renome nas redondezas do Planalto, Seo Pedro fora presenteado. Getúlio entregou um pequeno agrado para o simples maquinista. Desde a juventude, Seo Pedro guarda a santa relíquia. Devoção ou cuidado sempre fora prestado ao presente.
Com um suspiro de emoção, o maquinista percebeu o brilho fosco dela, em cima da pia. Apanhou a chave, agrado do presidente Getúlio para o Seo Pedro com os seguintes dizeres: “Tu és Pedro, dou –lhe a chave do progresso”. Progresso ou não, o maquinista sempre trouxe a chave como amuleto em sua vida.

sábado, 10 de setembro de 2011

Bonecos falantes

Lá vinha ele, Elias Rocha ou Elias “dos bonecos”, cavalgando como um cavaleiro sobre sua carroça, curvado pelo tempo e pela idade. Sempre perambulava a orla do rio Piracicaba, à procura de restos de madeira, garrafas plásticas e materiais para suas criações. Jeito humilde e de família simples, Elias vivia em meio à modernidade local da Rua do Porto.
Em meados de junho, na antiga Freguesia de Santo Antonio de Piracicaba, à margem esquerda do rio, a Festa do Divino animava os moradores locais com congada, cururu e barraquinhas.  Elias fora convocado pela Irmandade do Divino para uma missão especial; o capelão da festa, Monsenhor Jorge, pediu para o bonequeiro uma encomenda especial:
- Elias, a Santa Madre Igreja, considerando suas criações e belezas com que encanta o rio Piracicaba, pede que vossa senhoria embeleze a festa do divino com alguns de seus bonecos. – disse Monsenhor.
Impossibilitado por uma doença nas cordas vocais, Elias concordou com um manejo de cabeça. Lá foi Elias, ajudando o rio e reaproveitando o lixo existente no local.
Os preparativos para o Divino Espírito ganhavam corpo, os moradores da Rua do Porto contribuíam com doações, o barracão já enfeitado para o Tríduo, o palco do cururu posto em frente à capela e o barco ancorado na rampa. Com isso, Elias trabalhava em cinco bonecos, guardiões do Divino, com tanta destreza e paixão, próprios do artista.
No último dia do Tríduo, celebrado na pequena capela, o bonequeiro terminou suas criações. A entrega da encomenda ao capelão seria na manhã seguinte, no sábado. Exausto pelo trabalho, Elias fora dormir.
Na manhã seguinte, quando acordou, o bonequeiro se deparou com um falatório em seu quintal. Mas quem poderia ser? Só os bonecos do Divino estavam presentes. Isso era impossível. Assustado, Elias olhou pelo buraco da porta da cozinha, com grande espanto percebeu que os bonecos estavam sentados, conversando. “Estou ficando louco”, pensou Elias.
Intrigado, Elias saiu à procura de ajuda, pois precisava entregar a encomenda falante! Seu Bartolomeu, o vizinho de Elias, estava sentado à porta fumando cachimbo de corda.
- Bom dia, Elias. Porque tá assustado homem?
Elias, com gestos, tentou explicar para Seu Bartolomeu. Após um tremendo esforço, desistiu. Bartolomeu, vendo a agonia de Elias, decidiu acompanhar o bonequeiro até a casa. Elias, ao entrar, sentiu um silêncio profundo, espiou pelo buraco da porta da cozinha. Os bonecos do Divino permaneciam em pé, onde no dia anterior havia deixado. Será que foi um sonho ou obra do Espírito Santo?
Naquele ano, a festa comoveu a todos os participantes, mas Elias permaneceu reflexivo, pois não é todo dia que seus bonecos falam. Assim, Elias continuou a embelezar as margens do Piracicaba com seus guardiões pescadores.