quinta-feira, 25 de agosto de 2011

Evangelho

Andava rápido pelas ruas, atravessando as vielas com alguns trechos cobertos por vestes ao vento. As galinhas ciscavam no quintal, ao som do lamento triste de algumas mulheres. O sol castigava a região seca, onde os muros da cidade ao longe lhe davam considerada proteção contra as ameaças externas. Jerusalém, cidade de nossos pais, Abraão, Isaac e Jacó, há poucos dias, fora palco de umas das mais sangrentas crucificações sob o domínio romano. As autoridades dos judeus incitaram o governante local, Pôncio Pilatos, a executar impiamente o profeta Jesus de Nazaré.
Acometidos pelo medo de uma intervenção romana, os discípulos do Nazareno estavam reunidos em uma casa, com portas e janelas fechadas. De repente, um jovem adentra o local, com a face exausta e preocupada. Ao redor de uma mesa, senta-se o jovem, perto de dois anciãos que recordavam os últimos eventos. O cheiro adocicado de ervas, misturadas ao carneiro assado, despertava os discípulos. Na cozinha, Maria Madalena preparava as refeições, auxiliada por Marta e Maria, sua irmã. A vinda do senhor tardava, mas a esperança sempre se renovava a cada partilha do pão.
- Notícias, João? – perguntou um senhor, de meia idade, com poucos cabelos na fronte e barba grisalha.
 - O sinédrio está em guerra, insatisfeitos com nossa presença em Jerusalém, Pedro. Os romanos intensificaram as buscas. Precisamos anunciar Kristos na região.
- Tenhamos calma e cautela. Jerusalém, ainda precisa do nosso testemunho – responde o patriarca.
- “Ide e anuncia a Boa Nova a todos os povos” – recordou João – Lembre Pedro, Kristos deixou este legado. Anunciar sua palavra a todos; semear a boa nova no canteiro do mundo.
Com testemunho e coragem, a comunidade nascente reunida na partilha do pão sempre mais avançava no anúncio de Kristos. Para os discípulos, o medo fora superado e purificado pela crença, Kristos vive; após séculos, suas palavras são ações para os menos favorecidos.

sábado, 13 de agosto de 2011

Questões da enfermagem

Olhe, enfermagem é doação, cuidado e assistência ao ser humano na doença em busca de recuperação. Num primeiro momento, a frase acima denota um discurso belo. Na prática, a realidade de assistência é vista sobre outra ótica. Basta recordar algumas reportagens exibidas pelos meios de comunicação, com a superlotação de pronto-socorros, ausência de profissionais e equipamentos inadequados, em que o indivíduo é posto à margem no atendimento, silenciado através de censura pelas autoridades locais.
Enfermagem é ponte de cuidados, onde um ser humano assiste o outro em suas fragilidades. Contudo, frágeis e delicados são alguns dos profissionais da saúde que mergulhados num ambiente caótico, sobrevivem com baixos salários, estressados por campainhas intermitentes e impossibilitados em suas atitudes por decisões empresariais. Enfermagem é trabalho coletivo entre diversos saberes. Selva de pedra dos cuidados, isto sim, onde o paciente é fragmentado para estudo da fisioterapia, enfermagem, nutrição e medicina, sem reconhecê-lo como sujeito dotado de vontade, razão e liberdade na escolha de tratamento.
Nas relações de enfermagem existe uma articulação de ações para o bem comum, entretanto há conflitos e disputas que envolvem questões de autonomia e poder de agentes. O atendimento com excelência depende das tarefas e deveres da própria função, do clima das relações entre direção e empregados, do salário, dos benefícios sociais e principalmente das políticas da empresa e do tipo de supervisão recebida. O profissional da saúde de grau técnico, maioria no país, precisa se organizar em associações na luta pelos seus direitos, em que patrão não sustente chapa sindical. Assim, trabalhos em turnos, cobrança e abuso de chefias condicionam o profissional da saúde a uma jaula, na qual o cliente/paciente é devorado durante o tratamento prestado. Diante disso, a gestão de saúde precisa cultivar o diálogo e o respeito entre as equipes, para que seja reconhecido o valor do profissional, onde o mesmo não seja somente uma peça de reposição de setores.

Texto publicado na seção Carta do Leitor do JP no dia 12/08/11.

quinta-feira, 11 de agosto de 2011

Banha, barriga e bunda

A conversa ia longe. Petiscos, samba de roda e uma algazarra tremenda no barzinho. Quatro amigos, chope e filosofia das mais chinfrins.
- Bunda sim, como não? Toda mulher precisa ter bunda sim e grande, de preferência – disse Lírio, um belo marmanjo acomodado ainda na casa da mãe.
- Bunda?! Imagina Lírio, apenas um pequeno detalhe na criação – disse Cássio, divorciado três vezes, ainda na pista à procura do grande amor da vida.
- Detalhe essencial, o glúteo ou a bunda para os mais íntimos, serve para assento e sustento dos sonhos alheios – completou Rapaga. Luiz Carlos Rapaga, sargento aposentado a beira dos bares e de um ataque de nervos.
- Não – sentenciou Henrique, pai ausente de três filhos, preso duas vezes por não pegar as pensões – Barriga, isto sim, um delírio para os homens.
- Barriga?! – espantaram os outros três.
- Barriga, fascínio para todos os gostos, tanquinho ou mesmo com alguns pneuzinhos. Barriga de modelo é piegas, das atletas é meio durinha, mas das dançarinas do ventre é uma loucura, até me embriaga de tantos movimentos – completou Henrique.
Mesa farta, alguns cascos de cerveja vazios, frituras e samba a solto. Consenso no quesito mulher estava longe de terminar, até que Cássio, meio pensativo lascou uma reflexão significativa:
- Banha, esta sim é o que os homens gostam.
- Banha, só se for para cozinhar ou para “curtir” a carne – ridicularizou Rapaga.
- Olhe pessoal, de certa forma, Cássio está correto. Banha tanto na barriga como na bunda são momentos onde nós temos aonde pegar – finalizou Lírio.
Cansado da disputa do BBB, Henrique convida os amigos a um brinde:
- Viva a banha, a barriga e a bunda. Viva a mulher em todos os seus sentidos, principalmente as companheiras do dia – a – dia.
- Viva – respondem os outros em coro.

terça-feira, 2 de agosto de 2011

Falecida

Domingo, às sete horas, telefone toca. Maurício e Lúcia assustam-se com a notícia. Tia Mariquinha falecera essa madrugada, vítima de infarto fulminante. Uma lástima para a família de Maurício. A tia era a primogênita de oito irmãos paternos. Já de idade avançada, não tivera marido ou filhos, fora sempre uma pessoa humilde e elo de união da família. Viera da Itália, ainda criança, com seus pais.
- Lú, nós vamos para o velório – decidiu Maurício, ainda pasmado com a ligação.
- Imagina, Maumau. Sua tia morreu no interior do Paraná, num pobre vilarejo.
- Lúcia, eu vou. Não adianta insistir, meu dever como sobrinho é estar ao lado dos meus familiares.
- Vá sozinho, eu fico com as crianças, aqui em casa.
Após resolver o impasse, Maurício partiu de avião ao Paraná, para o vilarejo do Bartimeu. Durante três horas de avião, mais duas horas de ônibus, Maumau chegou ao destino, à pacata cidadela. Um silêncio sepulcral cobria a Vila do Bartimeu. Olhou para os lados, a trinta metros do ponto estava o velório, anexo do cemitério.
“Que estranho”, pensou “onde estão meus parentes”? Aproximou-se e lá estava tia Mariquinha, doçura de alma, gélida e pálida; sozinha, sem parente algum. Sentado num banco na entrada, aguardava pacientemente o coveiro, Seo Sebastião.
- Boa tarde. Onde estão meus parentes? – indagou inconformado Maurício.
- Não sei não. Só veio o senhor mesmo – respondeu o coveiro com tranqüilidade - Doutor Oswaldo, o administrador do cemitério, quer falar com o senhor.
Ao lado do velório havia uma pequena sala, no interior estava sentado Doutor Oswaldo, esperando a chegada dos parentes da defunta.
- O senhor é parente da dona Mariquinha? – perguntou.
- Sim. É minha tia.
- É o seguinte, meu jovem, a taxa do velório, do enterro e do coveiro é de três mil reais. Se for vala comum, gaveta pública, você entende? Se for jazigo, o preço é de cinco mil reais.
- Três mil reais! Minha tia não tinha jazigo?
- Não.
- Tem algum banco na cidade?
- Tem sim, me acompanhe.
Após ter acertado a dívida, Maurício velou a tia até por volta das cinco horas. Seo Sebastião preparou o cortejo. Quando descia a defunta, Maumau chorava amargamente as despesas daquele dia. Durante alguns anos, ele deixou de freqüentar a casa dos parentes. Para ele, parente e custo são sinônimos.